terça-feira, 21 de abril de 2015

Notícias de um quarto sem internet


Começo a escrever nesse domingo já sabendo que o post só será publicado quase dois dias depois por dois motivos : um é que onde estou agora não tem internet,  o outro é que moscas do lado de fora do quarto - e são insuportavelmente muitas-, um dos motivos para eu ficar trancaficada aqui dentro do quarto, me fizeram lembrar de encomendar ao meu irmão uma daquelas raquetes que matam moscas e qualquer outro inseto incauto eletrocutado. Ele foi para uma visita surpresa de poucos dias no Brasil, resultado de uma promoção irresistível porporcionada por uma companhia aérea que permitiu a ele dar esse pulinho em terras tupiniquins. E sendo uma visita surpresa, melhor não denunciar antecipadamente sua presença aos eventuais 2 ou 3 leitores desse empoeirado blog.

Passo esses dias em um outro canto desse país, com direito a descobertas da diversidade cultural e visual que mais fazem dar voltas ao meu trabalho, de tantas adaptações que vão se fazendo necessárias. No meio desses dias, um fim de semana escasso de opções, que acabou sendo preenchido com parte do trabalho a fazer, um jantar de última hora na casa dos colegas que vivem por aqui, uma caminhada a um mercado local (algo que faço sempre que posso) e muito tédio.

Além de palavras cruzadas no célular que desafiam minha memória de conhecimentos adquiridos em meus idos tempos de escola, com questões do tipo « coletivo de abelha », « transformação de estado líquido em gasoso » e « Região mais populosa do Brasil », terminei de ler o livro « Notícia de um Sequestro » de Gabriel Garcia Marques, literatura jornalística de primeira linha, como não poderia ser diferente com escritor de tamanha grandeza.

O livro, tratando de narrar a vida de alguns sequestrados na era Ecobar e as negociações para suas libertações, me fez pensar em tantos mecanismos que alguém deve criar estando em cárcere, tentando manter um mínimo de estado físico e mental para a sobrevicência em uma condição anormal. Pensei, porque aqui dentro desse quarto há cinco horas (e não dias, nem meses e nem anos) e pensando nas 13 horas que faltam para eu retomar o trabalho no dia seguinte, mil coisas já passaram pela minha cabeça. Não pretendo fazer uma comparação absurda e ridícula com a realidade de alguém que vê sua liberdade involutariamente tolhida. Tenho certeza de que essas pessoas dariam tudo para ter a possibilidade de circular, apesar de moscas, do calor e da necessidade de buscar o que se fazer.

O que me fez pensar é o fato de que nessas horas que fiquei aqui, tantas coisas passaram por minha cabeça à ponto de me dar a sensação que de havia muito mais vida dentro dela do que fora. O pensar no cenário distinto que encontrarei quando voltar ao Brasil, dessa vez bem mais diferente do que outras vezes, nos reencontros, no que será o produto de meus dias aqui, inventar conversas faladas e escritas e imaginar histórias de amor, de recordar coisas de 20 anos atrás, 25, olhar para trás e para frente também, imaginando possibilidades nessa minha vida imprecisa. De que viver não é preciso, como disse o poeta num verso de mais de um sentido.  Mas que navegar é preciso, embora eu ainda não tenha definido como, quando e onde ancorar.

E enquanto eu vivo meu mundo pessoal em meus próprios pensamentos, recordo ainda que durante uma rápida saída para comer algo e disputar a mesa com moscas, uma reportagem falava da realidade dura dos pescadores do Nilo, chamadas escritas no rodapé atualizavam sobre notícias sobre um mundo de bomba no Oriente Médio, xenofobia no país que tanto brigou pelo fim do Apartheid e  enfim, de sequestros. As notícias foram cortadas pelo pedido de pessoas que pediram para ver um dos campeonatos de futebol. Um homem local sentou-se em minha mesa sem muitas delongas, simplesmente porque era uma boa localização para ver a TV. Pensei na estranheza que aquilo me causara, vindo de um mundo onde a mesa, enquanto « sua », é um reino onde apenas se sentam aqueles que são convidados. Ele apenas me perguntou se eu assistia futebol. Resolvi não revelar minhas origens do que ainda insistem em chamar « País do Futebol » para não continuar um papo que não tive vontade de ter  nesse dia tão cheio de introspecção e respondi apenas que só assistia futebol durante a Copa do Mundo, o que afinal era verdade.

Enquanto busco o que fazer, me arrependo de não ter trazido meu HD com uma série de filmes novos copiados de um colega que bem poderiam entreter-me um pouco mais, com a vantagem de ainda vir com legendas em português, já que o colega em questão é um « gajo muito fixe, ó pá » que fez a gentileza de emprestar-me seu pen drive recheado de filmes.

Penso que deveria ter trazido mais um livro, sabendo que o outro fatalmente acabaria logo e penso também que fico contente em poder deixa-lo para trás, sabendo que um dos colegas por aqui, embora esteja viajando, é espanhol e nesta língua está o livro. E penso que gosto de deixar livros para trás e descobrir novos no caminho, como se livros pudessem mais que contar apenas histórias escritas nele, pudessem também contar histórias de quem os teve um dia.

E finalmente penso que ainda há trabalho a fazer e, apesar de princípios de manter um dia com certa distância dos afazeres, o dia tornou-se longo demais e que talvez eu possa descobrir algo que ainda não havia pensando enquanto trabalho, enfim.

Mas não há um finalmente, porque continuo pensando.

sábado, 4 de abril de 2015

Sons ao redor

O calor é imenso. Impossível de descansar nessa quente tarde de sábado dentro do barraco de pau à pique que me foi atribuida para esses dias de trabalho nesse ínfimo pedaço desse planeta enorme. Coberta com telhas de metal tão inadequadas à elevada temperatura, o barraco apenas esquentava ainda mais e o calor acumulado fazia-se sentir durante toda a noite. As pequenas janelas não contribuiam para ventilar o interior e já eram quarto noites mal dormidas.

Foi nessa quente tarde de sábado, no desespero de tentar ao menos uma pequena soneca, que decidi usar duas cadeiras para recostarme  à sombra em um ponto do compound onde uma suave corrente de ar dava uma deliciosa sensação de alívio contra o termômetro que passava dos quarenta graus.

Em minhas mãos, um velho livro de Gabriel Garcia Marquez em espanhol que encontrei em meio a tantos outros livros em tantas outras línguas deixados pelos que vão passando. O livro, chamado Notícia de um Sequestro em português, falava da vida de cárcere privado sofrida por pessoas sequestradas em meio à era de Pablo Escobar na Colômbia e do processo que envolvia a libertação destes.

Deito o livro em meu colo e encosto a cabeça na cerca feita de palha. Embora os fiapos de palha num primeiro momento me incomodem, deixo-me vencer pela necessidade de repousar. Fecho os olhos e percebo então os sons que me rodeiam e que me tiram da sensação de silêncio num momento em que outros moradores do campound estão trabalhando fora em outro lugar, quietos por aqui ou até dormindo em suas barracas ou tendas não tão quentes como a minha. Primeiro chama-me a atenção a voz de duas crianças brincando, falando palavras numa língua que desconheço, mas que não deixam de transmitir a simplicidade de crianças brincando. O que me leva a pensar que vinte quilômetros daqui, e às vezes ouvimos evidências de tal através de estopins que inrompem ao longe, pessoas que um dia foram crianças disputam territórios e já perderam sua inocência.

Pássaros pequenos, pios dos pintinhos que desafiaram a caça aos ovos feita semanas antes graças a uma galinha que soube bem esconder sua produção somam-se ao burro que zurra (confesso que tive que apelar ao Google para lembrar disso) e à cabra que bale. Não há som de carros, pois os poucos que rodam por aqui são das organizações que por aqui aterrisaram.

É um silêncio cercado de sons. Então não é silêncio, diriam. Mas vejo, numa mistura de percepções e sentidos, esses pequenos sons ao redor como cores que se dão ao silêncio. Porque esses sons são de movimentos do lado de fora que não vejo e que me fazem imaginar suas origens.

Com a cabeça já ajustada à cerca de palha, caio no sono. Acordo com o ritmo da caneta que bate sobre a mesa do escritório que fica uns 10 metros de onde estou. Um colega, isolado dessas cores de som por seus fones de ouvido, bate a cadência da música que ouve. Empolgado, ele chega a cantar junto sem se dar conta que alguém o ouve do lado de fora e que assim, é sem saber capturado para somar-se aos sons ao redor.