Uma viagem não começa no dia em que entramos no avião
e partimos. Ela começa bem antes, quando o destino que escolhemos não o foi por
caso. Algumas viagens sim, podem vir de uma escolha instantânea, como eu fazia
com uma amiga mil anos atrás, chegar na rodoviária e tendo como criterio um
destino cuja viagem não durasse mais que quatro horas, para podermos voltar no
mesmo dia, diziamos: “Para onde vamos hoje?”
A viagem começa na própria viagem, não aquela
concreta, marcada por passagens, check-in, malas a fazer, mas a viagem
interior. Aquela viagem que te faz desejar estar naquele lugar, que te faz
imaginar como seria estar lá, que histórias poderia viver, nos possíveis
encontros, nos desencontros até.
Lembro-me de um momento de um filme chamado “O
Albergue Espanhol”. O protagonista, interpetrado pelo queridinho Roman Doris, como
um estudante francês que vai à Barcelona pela primeira vez fala das ruas que
lhe pareciam tão desconhecidas mas que depois se tornariam tão familiares e tão
parte de sua história.
Viajar sempre foi algo que me pareceu familiar,
literalmente. Meu pai, já filho de um imigrante alemão chegado ao Brasil lá no
inicio do século passado, fez o caminho inverso. Conheceu minha mãe e depois de
me “produzirem”, embarcaram num navio de volta às terras tupiniquins. Nasci
para ser bem paulistana, em um hospital bem próximo à mais paulista das
avenidas.
Bastaram menos de 15 anos de vida para eu começar a
viajar por Londres, e algumas vezes por outros confins ingleses, sem nunca ter
estado por lá. E foram precisos quase 30 anos para que isso se concretizasse.
Antes, viajei sim muito à Inglaterra e à sua capital, pelos livros de Agatha
Christie e por Hitchcock, mais especificamente pelo filme “Frenzi”, produzido
em Londres depois de muitos filmes feitos na terra do Tio Sam. O filme começava
às margens do Rio Tâmisa, Hitchcock fazia sua rápida aparição clássica e um
corpo é visto boiando. O que lembro mesmo deste instante é de meu pai falando
que fizeram um grande trabalho para despoluir o rio, coisa que, quarenta anos
ou mais depois desse filme, ainda não conseguiram fazer no pobre Rio Tietê, que
corta a Capital da mais paulista das capitais.
Agatha Christie entrava com a atmosfera londrina, com
o mistério e as imagens que se formavam e minha cabeça de homens com seus
chapeus pretos redondos portando guarda-chuvas e mulheres extremamente polidas
a caminhar em ruas cinzas e mal iluminadas romantizadas pelo “fog”.
E tinha tambem a trilha sonora, tão oposta a tudo
isso, composta de Sex Pistols, Pink Floyd, David Bowie, The Who e tantos e
tantos outros que deram seus primeiros acordes em terras londrinas.
A história diz que foram os ingleses que reconheceram
a independencia do Brasil de Portugal (embora seja a declaração de Independência
mais curiosa do mundo, jã que foi feita pelo filho do Rei, o filho que virou
Imperador e depois voltou pra terrinha deixando seu filho de 5 anos para tomar
conta disso tudo aqui).
Pois bem, foi o rock mais uma vez que me fez viajar,
desta vez para terras mais próximas, logo ali do outro lado do oceano, um pouco
mais ao norte. Um desses acasos que me levaram a um show de rock português de
um grupo chamado GNR quando eu tinha lá meus 18 anos (sim, faz um tempinho) e
me vi descobrindo um lado novo nunca pensado nas tantas aulas de história e
nunca transmitido pelo português da padaria. Era um festival chamado “Ibero-Americano”.
Muitas manifestações culturais de música, cinema e teatro dos países ibéricos e
latino-americanos. Devo agradecer ao meu então lado pseudo-intelectual por me
levar a esse tipo de evento.
O fato é que eu quis saber mais do tal grupo e
naqueles tempos tão longinguos não existia internet para dar uma consultada no
Wikipedia e muito menos Youtube para ver uns videozinhos e seja lá o que fosse
para se saber um pouco mais sobre o tal grupo.
Falando aqui e acolá, uma aluna de alemão da minha mãe
(que até hoje dá aulas de alemão no mesmo lugar) e que eu nunca cheguei a
conhecer deu o endereço de um amigo dela na região do Porto. Escrevi, ele
respondeu, e essa troca durou mais de dois anos. As cartas foram além de falar do
grupo que havia iniciado a conversa. Foram trocas sobre muitos outros grupos,
incluindo fitas cassetes daqui e de lá, de falar de filmes, de músicas de
outros mundos e que certamente me tirou de um mundinho tão restrito e que
dificilmente teria contato com tanta informação nova neste lado do meu mundo
onde somos bombardeados por enlatados e parece que é preciso fazer um certo
esforço ou ao menos ter vontade de descobrir algo mais além disso.
E é claro, veio a fantasia de conhecer o lugar daquele
que enviava aquelas cartas com suas bordas em verde e vermelho, de estar mais
perto daquele mundo, de imaginar um encontro com quem as escrevia. Era pura fantasia
na altura, porque a realidade, digamos, mais material, não permitia nem sequer
uma ida até o aeroporto mais próximo.
No entanto, os anos passaram, outras histórias vieram,
e aquela vontade foi ficando em algum lugar perdido no tempo e no espaço.
Para voltar à Londres, desta vez em carne e osso, foi
preciso dizer: “agora sim, eu posso!”. E fui e depois de 30 anos de viagens
imaginárias, caminhei por 2 semanas pelas suas ruas como se aquilo sempre
tivesse feito parte de mim. Tirei uma foto do alto de uma ponte sobre o Tãmisa
(enfim, o Tãmisa) da usina de Battersea e a via como se estivesse
materializando a capa do disco do Pink Floyd, caminhei por Camden Town imaginando
aqueles meus grupos que um dia cantaram por lá, fui à Convent Garden revendo
onde Hitchcock filmou seu filme, fui onde está o pequeno monumento à Agatha
Christie, andava de metrô por estações cujos nomes me eram tão familiares.
Foram precisos anos nesta vida no mundo humanitário,
anos a conhecer pessoas de tantos países do mundo, para que uma conversa em um
recanto quase perdido à beira do Rio Nilo ao norte do Sudão do Sul com um
colega português despertasse a vontade dormida de conhecer Portugal.
Uma conversa qualquer, na qual eu pensava para onde
iria em minhas próximas férias, o que deveria ser a Grécia, foi vencida pelo
encanto desse português por sua terra. Aquela sensação do tipo “mas peraí, é
mesmo, eu ainda não resolvi essa história de ir para Portugal!” veio como uma
luzinha que acende sobre a cabeça. E mudei todo o meu roteiro. Pouco depois, eu
estava com passagem comprada, muito mais que um “agora eu posso”, mas sim um “acho
que está mais que na hora de conhecer Portugal”.
Desta vez, a viagem sobre a viagem tinha Internet,
Youtube e até mesmo uma exacerbada vontade de saber mais que talvez tenha até colocado
minha sanidade em questão da parte deste meu colega. Até novas viagens antes da
viagem eu fiz, como crer que encontraria o homem da minha vida e nunca mais
voltar para esse rincão do mundo. Mas não foi este o meu fado, coisas da vida.
Conheci Lisboa, conheci o Porto e, principalmente pelo
Porto, onde o colega e amigo que iria me desviar de meu destino mediterrâneo
esteve presente o tempo todo ao me fazer conhecer suas ruas e sua deliciosa
gastronomia (e até sua escola), minha viagem é querer voltar a viajar por ali,
porque da mesma maneira que uma viagem não começa ao se entrar no avião, ela não
acaba quando se parte.
E por fim, a mesma internet hoje disponível me teria
permitido reencontrar até àquele que me escrevia aquelas cartas duas décadas
atrás. Mas a idéia de que a viagem era minha e não dele, hoje um senhor casado
e pai de família (sim, a internet nos permite saber dessas coisas), me fez
deixar a proposta de um contato e um possível encontro para lá. Talvez, porque
no fundo, eu quisesse guardar lembranças daquelas viagens que nunca fiz. Talvez,
porque eu quisse hoje viver tudo isso como uma nova viagem.