domingo, 13 de dezembro de 2015

2015, o ano que começou em 2008


Quando eu estava na faculdade de Psicologia, surgiu a possibilidade de nos inscrevermos durante as ferias para um trabalho a ser feito em uma região povoada por indígenas na Floresta Amazônica. A primeira coisa que eu pensei foi: O que? Dormir em barraca enfiada num mosquiteiro, insetos para todos os lados, cagar no mato? Eu gosto é de cimento, porra!

Lembro das vezes (duas apenas) em que fui acampar na vida antes disso: Uma, em 1990, com os colegas de outra faculdade que fiz antes de ir estudar Psicologia, aquela que a gente faz para agradar o pai, porque na época eu achava que era o que eu deveria fazer.  Na ocasião, dormi a primeira noite na barraca, as outras, no confortável acolchoado do banco deitado do carro, que nem era meu.  A segunda vez foi com um amigo que fiz quando fui pra Porto Alegre e tchau e os amigos dele, perto de uma linda praia mais ao sul de Florianópolis. Lugar lindo, paisagem linda, mas o colchão…

Não que eu fosse uma pessoa de luxos. Muitíssimo longe disso, para uma garota classe media que cuidava para ter dinheiro o suficiente para pegar o ônibus no dia seguinte.

Depois disso, me convenci que, apesar dos pesares, se não desse para bancar uma cama e um banheiro limpinhos para as próximas viagens, eu ficaria em casa mesmo. Fiz viagens bem econômicas pela América Central, de pagar 20 dólares a noite (nos tempos em que um Dolar valia dois Reais) apenas para ter uma boa cama e um banho quente (em alguns lugares era frio mesmo, mas não era um problema dada a temperature ambiente).

Enfim, calhou que o destino (ou seja lá o que for) me fizesse passar pelas condições de vida básicas, mas muito mais básicas que aqueles campings feitos em meus dias de meus tenros vinte e poucos anos. Neste momento, escrevo interrompida pelas moscas que tenho que espantar a cada segundo, debaixo de uma árvore para ter um pouco de sombra nesse calor escaldante, do qual o único recurso para refrescar-me será um banho de caneca quando o sol baixar, ainda para aproveitar o pouco da luz do dia sem depender de uma lanterna para tal.

Mais tarde, após um jantar à base de lentilhas e carne de cabra, irei dormir em horas normalmente muito antes do habitual pois o gerador será desilgado em uma tenda, metida em uma barraquinha anti-mosquito anti-morcego anti-aranha anti-besouro anti-rato anti-cobra anti-escorpião anti-insetos-que-não-sei-o-nome.

Penso que esse longo acampamento logo vai acabar. Este ano de 2015 na verdade começou em 2008, quando uma garota já nem tão garota assim de sentimentos misturados deixava o Brasil com sua grande mala vermelha para começar uma viagem que passou por trinta novos países, conheceu centenas de pessoas, sendo que poucas, bem poucas mesmo realmente ficaram e quando parou para se ver, já não era mais a mesma. Hoje, ela pensa apenas que já é hora de voltar para casa.

Enquanto aqui estou entre moscas e os chinelos a pisar a terra, idealizo o apartamento que ainda não tenho, que vejam só, poderá enfim existir graças à noites quentes mal dormidas. Dentro dele, que também não terá como ser muito grande, terá que caber um pouco do que eu trouxe dessa história e, se ele for amplo o suficiente para acolher as tais poucas pessoas que ficaram, as que já existiam antes da viagem começar e as que eu ainda nem conheço mas, quem sabe, entrarão ali porque também entraram na minha vida, ele já será grande o bastante.

Que venha 2016! Acho que vamos nos dar muito bem!

domingo, 13 de setembro de 2015

Haja história para contar!


Ontem, no dia em marcava 8 meses de missão, 4 meses que faltam,  tive a sorte de estar em um lugar onde acontecia um evento que deu novas cores à essa minha temporada. Enquanto eu assistia àquelas danças tradicionais, música e mesmo teatro, lembrei-me  de outros momentos supreendentes que tive e que, de tão inusitados, seriam um grande exercício para poder descreve-los. E também pensava que ali, aquela dança podia ser a mais rica representação do país que eu talvez tenha podido conhecer.  A dança era alegria, união, cores, tão alheia à tudo com que ela mesmo contrasta nesta terra sofrida. Dançar ali, era resistir, era viver, sorrir, divertir-se, fazer divertir. E fazia.

E enquanto aquele grupo de homens e mulheres dançava com seus trajes e rostos coloridos, eu dançava em uma retrospectiva de outros momentos que, por mais que eu fale deles, me pergunto com quantos eu terei efetivamente conseguido compartilhar esses momentos e as sensações que eles me provocaram.  Mas vou tentar :

-          Em uma região a dois mil metros de altutude, ao Leste da República Democrática do Congo, um lugar frio onde, apesar da presença de ovelhas, nunca se considerou utilisar sua lã. Sempre achei curioso que práticas milenares em outras regiões do mundo não tenham sido implementadas por ali. Pois nesse dia fazia frio e uma leve neblina dava ao lugar ares ainda mais bucólicos. Ali as ruas, ou melhor, os caminhos, eram todos, todinhos de terra. As casas, como em quase todos os lugares por onde passei, eram de barro cobertas de palha. As poucas casas em tijolo eram construções deixadas por religiosos ou antigos colonos e usadas por escolas ou autoridades.  Com nossa visita, um lugar que apoiávamos resolveu nos fazer uma homenagem. Eu era a única estrangeira num raio de uns 100km e portanto, ainda que aquilo me deixasse muito sem jeito, estava sendo tratada como a pessoa mais importante do universo. Eram discursos, cantos, agradecimentos e finalmente, a hora de distribuir os presentes oferecidos pela comunidade. Ali, sentada com meus colegas à frente do palco, naquele imenso campo de terra, sou chamada para receber meu presente : Uma ovelha… viva. Não vi no dia seguinte quando ela se foi desta para melhor, mas assei o pernil e ficou ótimo.

-          Um ano antes, também no Congo, era o dia da Mulher. Ali, esse dia é tido como um dia em que as mulheres podem enfim fazer a festa do jeito delas.  Para muitas, é o único dia. Eu estava em mais um desses lugares onde crianças me cercavam cheias de curiosidade e interrompiam seu caminho ao levar latas d’agua para se aproximar. Os recipientes iam de acordo com a idade das crianças. As maiores com grandes latões, o menino de uns três anos com uma garrafa de dois litros. Me convidaram para falar sobre nosso trabalho a um grupo de mulheres. Quando cheguei ao barracão onde eu era esperada, elas começam a dançar e a cantar para mim. Era eu que ia dar algo mas foram elas que me deram.

-          No Chade, eu trabalhava em um projeto para mulheres que iriam operar ou se recuperavam da operação que repara uma condição chamada « fístula obstétrica » (google, my friends). Elas falavam árabe, eu não entendo nada de árabe. Mas podia ficar feliz com elas quando elas podiam enfim retornar aos seus lares, em algum lugar à beira do deserto do Saara. As que ficavam, trançavam o cabelo uma às outras. Um dia, eu pedi que me fizessem algo também. Duas mulheres se aproximaram, começaram a fazer tranças que facilmente se desfaziam e entâo começaram a rir e a falar algo. Então eu perguntei o que elas estavam falando e me traduziram : «  Elas estão dizendo se seu cabelo é ruim ! »

-          Sou fascinada por fenômenos da natureza. É ela que volta e meia mostra quem é que manda por aqui. Que por mais que se tente domina-la, ela acabará por vencer. Sua força às vezes pode ser trágica, mas em outras ocasiões, é possível aprecia-la. Em minha primeira semana no Chade, olhei para o ceu e vi que ele se escurecia num tom que ia do ocre ao marrom escuro, quase preto. Era uma enorme tempestade de areia que voava bem ali, a cobrir a luz do sol, a cobrir o solo de areia, muita areia. E cobriu minha roupa, meu cabelo, os móveis e depois se foi. Mas foi lindo.

-          E há aquela experiencia que eu só teria estando onde estou. No Sudão do Sul, bem mais ao Norte de onde vi a dança que me fez viajar tudo outra vez, viajei entre dois lugares de barco pelo Rio Nilo. Aquele rio que eu só conhecia das aulas de História e de uma viagem de férias à Uganda onde diz-se, é a fonte do rio, algo contestado por Ruanda e Burundi, estava bem ali, ao meu redor. E eu, num pequeno barco, sentindo-me grandiosa. Uma experiência que me revitalizava para a realidade que eu via, às suas margens.

-          A minha primeira missão não podia ficar de fora. Enquanto eu estive em Honduras, algo que eu achava já estar fora de moda por terras latino-americanas aconteceu. O então presidente foi « gentilmente » retirado de sua casa por militares e acontecia ali um Golpe de Estado. Um lugar que vivia um quotidiano típico viu-se então com toque de recolher, discursos diários na TV do senhor colocado em seu lugar e uma incerteza geral. O presidente deposto, após alguns meses, conseguiu entrar escondido no país (ele havia sido enviado para outro lugar) e refugiou-se… na Embaixada Brasileira! Os que lhe eram favoraveis vinham até me felicitar. No fim, tudo foi um bocado folclórico. Mais uns meses, vieram as eleições, alguém foi eleito e tudo voltou ao normal como se nada tivesse acontecido.

Continuo contando os dias para o fim dessa missão, mas não posso deixar de dizer que, apesar de condições às vezes difíceis, ficam umas boas historias!

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Londres, Portugal e as mais antigas viagens


Uma viagem não começa no dia em que entramos no avião e partimos. Ela começa bem antes, quando o destino que escolhemos não o foi por caso. Algumas viagens sim, podem vir de uma escolha instantânea, como eu fazia com uma amiga mil anos atrás, chegar na rodoviária e tendo como criterio um destino cuja viagem não durasse mais que quatro horas, para podermos voltar no mesmo dia, diziamos: “Para onde vamos hoje?”
A viagem começa na própria viagem, não aquela concreta, marcada por passagens, check-in, malas a fazer, mas a viagem interior. Aquela viagem que te faz desejar estar naquele lugar, que te faz imaginar como seria estar lá, que histórias poderia viver, nos possíveis encontros, nos desencontros até.
Lembro-me de um momento de um filme chamado “O Albergue Espanhol”. O protagonista, interpetrado pelo queridinho Roman Doris, como um estudante francês que vai à Barcelona pela primeira vez fala das ruas que lhe pareciam tão desconhecidas mas que depois se tornariam tão familiares e tão parte de sua história.
Viajar sempre foi algo que me pareceu familiar, literalmente. Meu pai, já filho de um imigrante alemão chegado ao Brasil lá no inicio do século passado, fez o caminho inverso. Conheceu minha mãe e depois de me “produzirem”, embarcaram num navio de volta às terras tupiniquins. Nasci para ser bem paulistana, em um hospital bem próximo à mais paulista das avenidas.
Bastaram menos de 15 anos de vida para eu começar a viajar por Londres, e algumas vezes por outros confins ingleses, sem nunca ter estado por lá. E foram precisos quase 30 anos para que isso se concretizasse. Antes, viajei sim muito à Inglaterra e à sua capital, pelos livros de Agatha Christie e por Hitchcock, mais especificamente pelo filme “Frenzi”, produzido em Londres depois de muitos filmes feitos na terra do Tio Sam. O filme começava às margens do Rio Tâmisa, Hitchcock fazia sua rápida aparição clássica e um corpo é visto boiando. O que lembro mesmo deste instante é de meu pai falando que fizeram um grande trabalho para despoluir o rio, coisa que, quarenta anos ou mais depois desse filme, ainda não conseguiram fazer no pobre Rio Tietê, que corta a Capital da mais paulista das capitais.
Agatha Christie entrava com a atmosfera londrina, com o mistério e as imagens que se formavam e minha cabeça de homens com seus chapeus pretos redondos portando guarda-chuvas e mulheres extremamente polidas a caminhar em ruas cinzas e mal iluminadas romantizadas pelo “fog”.
E tinha tambem a trilha sonora, tão oposta a tudo isso, composta de Sex Pistols, Pink Floyd, David Bowie, The Who e tantos e tantos outros que deram seus primeiros acordes em terras londrinas.
A história diz que foram os ingleses que reconheceram a independencia do Brasil de Portugal (embora seja a declaração de Independência mais curiosa do mundo, jã que foi feita pelo filho do Rei, o filho que virou Imperador e depois voltou pra terrinha deixando seu filho de 5 anos para tomar conta disso tudo aqui).
Pois bem, foi o rock mais uma vez que me fez viajar, desta vez para terras mais próximas, logo ali do outro lado do oceano, um pouco mais ao norte. Um desses acasos que me levaram a um show de rock português de um grupo chamado GNR quando eu tinha lá meus 18 anos (sim, faz um tempinho) e me vi descobrindo um lado novo nunca pensado nas tantas aulas de história e nunca transmitido pelo português da padaria. Era um festival chamado “Ibero-Americano”. Muitas manifestações culturais de música, cinema e teatro dos países ibéricos e latino-americanos. Devo agradecer ao meu então lado pseudo-intelectual por me levar a esse tipo de evento.
O fato é que eu quis saber mais do tal grupo e naqueles tempos tão longinguos não existia internet para dar uma consultada no Wikipedia e muito menos Youtube para ver uns videozinhos e seja lá o que fosse para se saber um pouco mais sobre o tal grupo.
Falando aqui e acolá, uma aluna de alemão da minha mãe (que até hoje dá aulas de alemão no mesmo lugar) e que eu nunca cheguei a conhecer deu o endereço de um amigo dela na região do Porto. Escrevi, ele respondeu, e essa troca durou mais de dois anos. As cartas foram além de falar do grupo que havia iniciado a conversa. Foram trocas sobre muitos outros grupos, incluindo fitas cassetes daqui e de lá, de falar de filmes, de músicas de outros mundos e que certamente me tirou de um mundinho tão restrito e que dificilmente teria contato com tanta informação nova neste lado do meu mundo onde somos bombardeados por enlatados e parece que é preciso fazer um certo esforço ou ao menos ter vontade de descobrir algo mais além disso.
E é claro, veio a fantasia de conhecer o lugar daquele que enviava aquelas cartas com suas bordas em verde e vermelho, de estar mais perto daquele mundo, de imaginar um encontro com quem as escrevia. Era pura fantasia na altura, porque a realidade, digamos, mais material, não permitia nem sequer uma ida até o aeroporto mais próximo.
No entanto, os anos passaram, outras histórias vieram, e aquela vontade foi ficando em algum lugar perdido no tempo e no espaço.
Para voltar à Londres, desta vez em carne e osso, foi preciso dizer: “agora sim, eu posso!”. E fui e depois de 30 anos de viagens imaginárias, caminhei por 2 semanas pelas suas ruas como se aquilo sempre tivesse feito parte de mim. Tirei uma foto do alto de uma ponte sobre o Tãmisa (enfim, o Tãmisa) da usina de Battersea e a via como se estivesse materializando a capa do disco do Pink Floyd, caminhei por Camden Town imaginando aqueles meus grupos que um dia cantaram por lá, fui à Convent Garden revendo onde Hitchcock filmou seu filme, fui onde está o pequeno monumento à Agatha Christie, andava de metrô por estações cujos nomes me eram tão familiares.
Foram precisos anos nesta vida no mundo humanitário, anos a conhecer pessoas de tantos países do mundo, para que uma conversa em um recanto quase perdido à beira do Rio Nilo ao norte do Sudão do Sul com um colega português despertasse a vontade dormida de conhecer Portugal.
Uma conversa qualquer, na qual eu pensava para onde iria em minhas próximas férias, o que deveria ser a Grécia, foi vencida pelo encanto desse português por sua terra. Aquela sensação do tipo “mas peraí, é mesmo, eu ainda não resolvi essa história de ir para Portugal!” veio como uma luzinha que acende sobre a cabeça. E mudei todo o meu roteiro. Pouco depois, eu estava com passagem comprada, muito mais que um “agora eu posso”, mas sim um “acho que está mais que na hora de conhecer Portugal”.
Desta vez, a viagem sobre a viagem tinha Internet, Youtube e até mesmo uma exacerbada vontade de saber mais que talvez tenha até colocado minha sanidade em questão da parte deste meu colega. Até novas viagens antes da viagem eu fiz, como crer que encontraria o homem da minha vida e nunca mais voltar para esse rincão do mundo. Mas não foi este o meu fado, coisas da vida.
Conheci Lisboa, conheci o Porto e, principalmente pelo Porto, onde o colega e amigo que iria me desviar de meu destino mediterrâneo esteve presente o tempo todo ao me fazer conhecer suas ruas e sua deliciosa gastronomia (e até sua escola), minha viagem é querer voltar a viajar por ali, porque da mesma maneira que uma viagem não começa ao se entrar no avião, ela não acaba quando se parte.

E por fim, a mesma internet hoje disponível me teria permitido reencontrar até àquele que me escrevia aquelas cartas duas décadas atrás. Mas a idéia de que a viagem era minha e não dele, hoje um senhor casado e pai de família (sim, a internet nos permite saber dessas coisas), me fez deixar a proposta de um contato e um possível encontro para lá. Talvez, porque no fundo, eu quisesse guardar lembranças daquelas viagens que nunca fiz. Talvez, porque eu quisse hoje viver tudo isso como uma nova viagem. 

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Ai que pão!


Acabo de descobrir que hoje é o dia do padeiro. A coisa é que isso me leva ao mesmo tempo ao passado, ao presente e ao futuro. Ao passado, porque me fez lembrar da padaria perto de onde eu morava quando era criança. Eram três donos, Seu Geraldo, um brasileiro engraçado (ao menos enquanto criança, eu achava), Seu Genaro, um italiano muito mal humorado que por conta disso acabou ganhando varios posters de candidatos políticos colados no carro pelos meninos da rua em que eu morava e o Seu Antônio, um português super educado que sempre dava uma balinha à mais às crianças que iam buscar os pãezinhos a pedido dos pais.  Incrível eu ainda lembrar os nomes. Coisas daqueles dias em que ir à padaria parecia ser tão bom quanto ira o Shopping. O nome da padaria era Flor de « alguma cidade portuguesa », como eram os nomes de todas as padarias de São Paulo, como Flor de Évora, Flor do Minho, Flor de Lisboa.

Hoje as padarias ficaram mais gourmets, como a Bella Paulista, a Galeria dos Pães, Saint Étienne, mas é também resultado de um aprimoramento em um dos comercios que mais fazem parte da vida dos paulistanos e hoje algumas são quase um supermercado. Mas ainda pode-se encontrar aquelas de simplesmente recostar no balcão e pedir um pingado acompanhado de um pão na chapa.

Eu pessoalmente adoro padarias. Quando estive um ano fora depois da minha primeira missão e sabendo que chegaria bem de manhazinha, eu tinha um único desejo : ir à padaria para comer um bom pão na chapa com aquela crosta crocante e aquele miolo macio e tomar um suco de laranja feito na hora. Ouvir aquelas máquinas de ferver água e fazer café, o burburinho dos clientes, do café com leite servido num copo americano, da dose de pinga logo de manhã para quem precisa, o liquidificador a fazer vitaminas para quem busca energia para metade do dia. A fila para comprar o pão e ainda levar um sonho recheado com aquele creme de baunilha estupidamente calórico. 

Poderia passar horas relatando recordações da padaria da minha infância, mas aquela padaria já não existe há muito tempo, assim como mil outras coisas foram acontecendo desde então e muitas outras padarias foram adotadas como cenário de outros instantes alimentados por pães na chapa, misto-quente e outras variações tendo o pão como elemento principal da composição padoco-gastronômica.

Veja bem, com exceção àqueles intolerantes ao glúten e aos que estão no meio de alguma dieta radical, o pão faz parte da vida de qualquer mortal. Pelos países que tenho andado, lá está ele, em todas formas e modelos : fofinhos, duros, redondos, achatados, com fermento, sem fermento, até com areia eu ja encontrei, pois a proximidade com o deserto fazia com que grãos de areia misturassem-se sorrateiramente com a farinha. E lembro-me quando estive no Senegal da deliciosa surpresa de encontrar num restaurante um pãozinho que era simplesmente igualzinho àquele da padaria da esquina. E é claro, das boulangeries francesas, que definitivamente mostram que chamarmos nosso querido pãozinho de pão francês é quase uma afronta.

E da primeira vez que pedi um sanduiche de queijo no Sul, o homem me perguntou : « No cacete ? ». Levei alguns segundos para lembrar que pãozinho no Sul é cacete ou cacetinho e assim evitar de dar-lhe um tapa na cara.

Em poucos dias, faço o caminho inverso de tantos donos de padaria que deram a elas o nome de suas cidades deixadas para trás. Estes sim foram sábios, pois sabiam que podia até faltar muita coisa à mesa, mas pão, jamais ! E vereremos que histórias tendo as padarias de lá como cenário virão.  Deu vontade de comer pão.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Arco-íris e bicicletas


Vejo poucas bicicletas por aqui. Quando as vejo, estão carregadas, muito carregadas de coisas enquanto seus donos as empurram pelas ruas para lá de irregulares. Vi um arco-íris tímido semana passada, enquanto esperava dentro do pequeno avião que me levaria a um lugar onde ver pessoas carregando uma AK47 não chega a ser incomum. Toda essa pequena introdução para falar de ataques à conquistas num mundo distante desse, ao acompanhar o que acontece longe daqui.

Seguir a timeline de uma rede social é tambem seguir informações, opiniões que podem ser iguais ou diferentes da sua. Foi numa rede social que vi fotos da imensa maioria de meus contatos colorirem-se com as cores do arco-íris, em resposta positiva ao fato de a Suprema Corte americana ter aprovado a união de pessoas do mesmo sexo que, embora seja um contrato, como é o contrato de qualquer matrimônio, representa uma conquista para muitos. E assim, eu também aderi e colori a foto do meu perfil, simplesmente porque acho mais que óbvio oficializar direitos de quem constroi uma vida juntos. Além disso, quem vive o amor nesse mundo cheio de guerra vai sempre ter uns bons pontos a mais de minha parte.

E destaco a palavra « Construir ». Porque é o que alimenta esse meu lado idealista, ufanista que seja, a continuar acreditando que um mundo melhor é possivel. Infelizmente, tanto aqui como lá, o destruir impede esse avanço. Aqui, o país mais novo do mundo, após um início que parecia próspero, vive uma nova era de conflitos. Ali, a conquista de casais gays incomoda àqueles que se apegam a conceitos de um livro escrito por homens, propagado por homens e cujo conteúdo também sofreu la certa censura, pois quem além de ter lido tal livro, pode ler também algum estudo de revista, que seja, sobre como ele se formou, o sabe.  Enfim, construção versus destrução em ambos os casos.

Não vou entrar muito na minha visão pessoal sobre religião. Porque religião é algo pessoal, digo que a minha é o respeito e assim respeito a religião de cada um desde que não venham me encher o saco dizendo que eu vou para o inferno se não fizer isso ou aquilo ou que algumas pessoas arderão no fogo eterno porque não seguem o mesmos princípios que elas. Mas que fiquem sabendo que, para eu realmente me incomodar com isso, eu teria que acreditar em céu e inferno primeiro e que religiosidade é questão de atitude e carater e de como tratamos as pessoas e frequentar a igreja (ou qualquer outro tipo de templo) não basta para fazer de alguém uma pesssoa melhor.

O que vi (felizmente em número iiiiiinnnnfinitamente menor) foi uma manifestação contra as fotos em arco-íris, mostrando a foto de uma criança desnutrida na África, apenas dizendo que se a campanha for por isso, aí sim. Pois uma coisa não invalida a outra !  Somar deveria ser a palavra de ordem, não ? Se não for para construir, para fortalecer o resultado de duras conquistas de e para pessoas que vivem, trabalham e amam, qual é o objetivo da destrução ? Está no tal livro algo do tipo « destrui uns aos outros » ?

Ainda esses dias, vi notícias sobre a inauguração da ciclovia na Avenida Paulista.  Mais uma vez, pessoalmente, eu fiquei muito orgulhosa. São Paulo, há muito tempo, vem precisando de alternativas de locomoção. Ainda há muito o que fazer, as linhas de metrô são poucas para uma cidade tão imensa, os ônibus não atendem a demanda, cansei de desistir de ir de um lugar ao outro só de pensar naquele vagão lotado. Já andei algumas vezes de bicicleta pela cidade, antes das ciclovias. Não é tarefa fácil, na rua é preciso tomar cuidado com os carros e aí, desvia-se pela calçada, onde os pedestres é que se incomodam. Ou seja, faltava lugar para as bicicletas e assim, as ciclovias tornam-se mais uma conquista. Sim, é verdade, política existe e há trechos mal planejados e como tudo que é novo, ainda haverá muita coisa a melhorar. Mas é um passo, ou melhor, uma pedalada !

E aí que mais uma vez, há quem resolva ser do contra. Claro, o Brasil é hoje um país bastante democrático e lembremos que foi, mais uma vez, resultado de muita luta após décadas de regime militar, o que faz da nossa democracia uma conquista também. Portanto, ser do contra é um direito de qualquer cidadão. Mas ainda assim, incomoda-me ver que há quem seja do contra muito mais pelo partido político do atual prefeito responsável por implementar as ciclovias que pelas ciclovias em si. Uma foto de um homem na África (mais uma vez a África !) em uma bicicleta carregando uma AK47 ironizando as ciclovias e a falta de segurança faz ganhar o que ? Há quem diga que as ciclovias serão um fracasso porque a segurança não é garantida, mas são as mesmas pessoas que circulam fechadas em seus carros (e que acontece até de terem seus carros roubados). O problema de segurança não está ligado à existência e ao sucesso das ciclovias, mas é algo a mais a se conquistar.  Mas uma vez, minha modesta chamada para somar e não destruir.

Pois é assim, ao ver a realidade daqui, onde homens circulam com suas AK47, bicicletas são transformadas em transporte de carga, tudo e todos que são destruídos em conflítos sem fim me faz questionar com o que as pessoas que estão em um lugar considerado mais privilegiados estão realmente preocupadas. Com elas mesmas e seus intocáveis conceitos que moldam uma moral que eu não sei muito bem qual fim tem (o de ter um cantinho no céu talvez ?) Que tal fazer isso sem transformar isso aqui num inferno ? Amem-se de todas as formas, deixem amar, andem de bicicleta, o mundo tem muito mais a ganhar.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Pé na Lama....


Hoje enfiei o pé na lama. Depois de tanto tempo bem comportada na capital, vivendo um dia de cada vez à espera de uma oportunidade para fazer algo que realmente dê sentido à minha existência, ao menos ao que se refere ao motivo de eu estar aqui, acabou acontecendo.

Sim, hoje enfiei o pé na lama. Os dois pés, melhor dizendo.  Daquele jeito que só esfregando com uma daquelas buchas que ainda encontramos na feira. Bom, na feira da minha terra, pois aqui são outros quinhentos.

Deixei a capital rumo à um vilarejo que em época de chuva transforma-se em um grande charco, o que por sinal caracteriza boa parte do território neste país em época de chuvas. E lá fui eu, acreditando que após quase uma semana sem chuva por aqui, minhas Havaianas, que tanto orgulho me dão quando vejo os produtos dessa marca tão brasileira em pés de gente representando as mais diversas nacionalidades, até porque depois da Copa do Mundo e da atual zona que está nossa política as opções de orgulho nacional vem se restringindo, pois as minhas Havaianas aqui estavam em meus pés e bastariam para uma pequena caminhada de menos de quinhentos metros. Só que não. E foi assim que enfiei o pé na lama.

Esta criatura da Selva de Pedra, capaz de beijar o asfalto depois de muitos dias de mato, pensa então : Estou mesmo enfiando o pé na lama ? Literalmente, sem dúvida alguma. Afinal, as condições geológicas e meteorológicas convidam para essa nobre experiência. Não tem gente que viaja a lugares ditos terapeuticos para esfregar lama no corpo todo e pagam horrores por isso ? Aqui lama é o que não falta. Vi meus pés – e minhas Havaianas -, envoltas de uma massa argilosa, porque afinal, galochas são para dias de chuva, não ?

A coisa é que, apesar desse retrato e dessa experiência tão literal de ter meus pés atolados num lamaçal,  uma sensação totalmente oposta ao significado pejorativo de enfiar os pés na lama veio quando pensei no que afinal, eu vim fazer aqui.  Uma daquelas sensações de orgulho, de finalmente sair do conforto da capital, onde por sinal eu já estava a contragosto, para trabalhar com a gente que nasceu e cresceu nessas condições que são tão, mas tão distantes do que imaginamos como um lugar para viver.

Mas as pessoas vivem sim aqui à sua maneira, caminham pelos charcos sem botas de borracha e em meio a tanto modismo do lado de lá do mundo em que pode-se encontrar tais botas pelo preço que mal cobriria um ano de trabalho de quem aqui vive, me vejo com um sentimento de uma estranha riqueza. Riqueza por cá estar, por oferecer alguns aprendizados tão acadêmicos e pessoais e muito mai,s por aprender imensamente com essa gente.

Tenho observado que desde que comecei a escrever esse blog, havia no começo um relato mais humorado de como eu vivia, do meu cotidiano para depois passar a ser algo mais reflexivo. Talvez eu esteja ficando velha e intimista (mais ainda do que eu sempre fui ?). Talvez seja porque as sensações que vivo com essas experiências seja o que tem mais tenham me fascinado. É como aquela propaganda do cartão de crédito : Algumas coisas não tem preço.

E como tenho ficado mais velha, é verdade que questões práticas assolam meu pensamento mais racional, voltadas à aquisiçao de um patrimônio, porque afinal é preciso ter um teto para cair morta, mas o que sei é que o dia em que eu parar quieta (e não sei se em poucos meses ou ainda em alguns anos, porque as coisas que me movem vão variando), o que dará valor a esse espaço não será o valor do metro quadrado, mas tudo o que eu puder colocar la dentro que possa representar, de alguma forma, muitas pessoas e histórias vividas desse lado do mundo que eu tenho o privilégio de conhecer.

Quando eu estou reunida com gente daqui, sempre gosto de dizer que eu não estou lá para impor nenhum conhecimento, mas que iremos aprender juntos. Porque é isso mesmo. Continuarei, portanto, a enfiar o pé na lama !

sexta-feira, 8 de maio de 2015

O Elefante e a Torre


Era um grande elefante. Do alto de seu dorso, as pessoas lá embaixo pareciam incrivelmente pequenas. Lá ia ele, caminhando lentamente com suas patas gigantes. Esse elefante ilustrava a capa de alguns livretos turísticos da cidade de Nantes, na França e levava as pessoas para muitas viagens. Eu viajei no tempo, para quando subi pela primeira vez num elefante, para quando mesmo sobre um elefante, eu é que era pequena e as pessoas lá embaixo eram grandes.

O elefante de Nantes é um elefante mecãnico, de proporções bem maiores que a de um elefante real. Lá de cima, era como estar no alto de um prédio de três ou quatro andares. Ele ia, com seus passos mecânicos, caminhando rumo a um grande carrossel. Tudo remete a um tempo em que a ciência inspirava a ficção, com ares de Julio Verne, que vivia, não por acaso, em Nantes. Uma recriação de um século XIX futurista. O elefante mecânico abria caminho com sua tromba, com ela lançava água e as pessoas, crianças de quatro a oitenta e quatro anos, simplesmente se divertiam com aquilo tudo, seja sobre o elefante, seja ali embaixo, tão pequenas.

O outro elefante, era um elefante de verdade. Um filhote de elefante, para ser mais específica. Usado para atrair o público para a inauguração de um grande supermercado que há muito muito tempo já mudou de nome, nos dias de hoje a Associação Protetora dos Animais não teria provavelmente permitido que uma centena de crianças montassem nele e desmontassem durante um dia inteiro. Eu fui uma dessas crianças. De estar ali em cima, no alto de meus quatro anos de idade, só me lembro do pinicar dos pelos do elefante e de pedir ao meu pai para descer. Melhor era ficar lá embaixo perto das pessoas incrivelmente grandes.

O grande elefante de Nantes, embora há muito eu tenha deixado de ser uma criança de quatro anos, tinha me feito mais feliz.

Dias depois, outra grande escalada me levaria às alturas concreta e simbolicamente. Primeiro, é preciso situar : Falo da Torre Eiffel. Por conta dias já mais longínguos em que era preciso contar moedas para ter literalmente o pão de cada dia, um dia estar em um lugar tão mundialmente desejado como Paris era algo que ficava num mundo tão fantasioso quanto eram as obras do já citado Julio Verne. Quis o destino – e convenhamos, quis eu mesma acima de tudo -, que esses dias ficassem para trás. E seja lá ou destino ou eu mesma, sei lá, permitiu que eu colocasse meus pés pela quarta vez na Cidade Luz em menos de quatro anos. A primeira aconteceu quase que por brincadeira : Numa conversa em que não se sabia quem iria ser mandado para um curso na cidade eu disse « se quiser, manda eu ». E me levaram a sério. Da segunda, foi uma passagem pela casa de um amigo feito nessas minhas caminhadas. Da terceira, igualmente outro amigo, mas com outro sabor, pois a paixão pela experiência de finalmente ter conhecido Londres (um sonho muito mais desejado em dias em que as moedas eram contadas, mas a biblioteca do bairro deixava que eu viajasse gratuitamente através de seus livros que me levavam a essa cidade) ainda era forte demais para que eu me deixasse encantar mais uma vez por Paris. A quarta foi esta última, quando voltei a ama-la e resolvi que já era hora de subir na torre que no final de contas, representa toda a França, embora seja, provavelmente, o lugar onde menos se fala francês em todo o país.

Subir na Torre Eiffel está longe de ser igual ao que se vê nos filmes. Nos filmes, há sempre algum casal apaixonado, não há filas de quase duas horas, não há aperto no elevador, não faz frio e chuva ao mesmo tempo. O tal casal simplesmente aparece lá no alto, a sós, com uma taça de champanhe, sem mais ninguém ao redor. Eu subi sem ter um par romântico, estava simplesmente só, aproveitando um dia em que decidi ficar enquanto minha familia, representada por meu irmão (que nem tinha nascido quando eu subi no tal elefante do supermercado), sua mulher, meus dois sobrinhos, a cunhada e a sogra dele foram ao Parque Asterix (O mesmo Asterix que eu devorava durante a adolescencia na mesma biblioteca de minhas viagens). O elevador lotado parou no segundo andar. Dali, já se ve a cidade e o Sena e tudo aquilo ajuda a se desconectar daquele movimento de tantos turistas, que só me chamavam a atenção quando falavam mais alguma língua desconhecida. Torre de Babel.

Mais um elevador para o topo. Daquele ponto, já não se viam pessoas pequenas ali embaixo, porque elas há muito tinham desaparecido. Do alto da Torre Eiffel, Paris parece ser uma grande maquete. Até mesmo a Torre de Montparnasse, que pretende ser um local para se ter uma vista panorâmica, fica pequena. A neblina passava por cima de Paris. Um grupo comprava champanhe a quinze euros para toma-lo em taças de plástico. E como fazia frio ali ! Mas não importava. Eu não tinha levado simplesmente duas horas e meia para chegar ao topo da Torre Eifel. Eu tinha levado muitos anos e muitas histórias aconteceram entre os dois elefantes. E que o melhor era saber que outras viagens seriam muito mais possiveis e não ficariam reduzidas a meros sonhos.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Notícias de um quarto sem internet


Começo a escrever nesse domingo já sabendo que o post só será publicado quase dois dias depois por dois motivos : um é que onde estou agora não tem internet,  o outro é que moscas do lado de fora do quarto - e são insuportavelmente muitas-, um dos motivos para eu ficar trancaficada aqui dentro do quarto, me fizeram lembrar de encomendar ao meu irmão uma daquelas raquetes que matam moscas e qualquer outro inseto incauto eletrocutado. Ele foi para uma visita surpresa de poucos dias no Brasil, resultado de uma promoção irresistível porporcionada por uma companhia aérea que permitiu a ele dar esse pulinho em terras tupiniquins. E sendo uma visita surpresa, melhor não denunciar antecipadamente sua presença aos eventuais 2 ou 3 leitores desse empoeirado blog.

Passo esses dias em um outro canto desse país, com direito a descobertas da diversidade cultural e visual que mais fazem dar voltas ao meu trabalho, de tantas adaptações que vão se fazendo necessárias. No meio desses dias, um fim de semana escasso de opções, que acabou sendo preenchido com parte do trabalho a fazer, um jantar de última hora na casa dos colegas que vivem por aqui, uma caminhada a um mercado local (algo que faço sempre que posso) e muito tédio.

Além de palavras cruzadas no célular que desafiam minha memória de conhecimentos adquiridos em meus idos tempos de escola, com questões do tipo « coletivo de abelha », « transformação de estado líquido em gasoso » e « Região mais populosa do Brasil », terminei de ler o livro « Notícia de um Sequestro » de Gabriel Garcia Marques, literatura jornalística de primeira linha, como não poderia ser diferente com escritor de tamanha grandeza.

O livro, tratando de narrar a vida de alguns sequestrados na era Ecobar e as negociações para suas libertações, me fez pensar em tantos mecanismos que alguém deve criar estando em cárcere, tentando manter um mínimo de estado físico e mental para a sobrevicência em uma condição anormal. Pensei, porque aqui dentro desse quarto há cinco horas (e não dias, nem meses e nem anos) e pensando nas 13 horas que faltam para eu retomar o trabalho no dia seguinte, mil coisas já passaram pela minha cabeça. Não pretendo fazer uma comparação absurda e ridícula com a realidade de alguém que vê sua liberdade involutariamente tolhida. Tenho certeza de que essas pessoas dariam tudo para ter a possibilidade de circular, apesar de moscas, do calor e da necessidade de buscar o que se fazer.

O que me fez pensar é o fato de que nessas horas que fiquei aqui, tantas coisas passaram por minha cabeça à ponto de me dar a sensação que de havia muito mais vida dentro dela do que fora. O pensar no cenário distinto que encontrarei quando voltar ao Brasil, dessa vez bem mais diferente do que outras vezes, nos reencontros, no que será o produto de meus dias aqui, inventar conversas faladas e escritas e imaginar histórias de amor, de recordar coisas de 20 anos atrás, 25, olhar para trás e para frente também, imaginando possibilidades nessa minha vida imprecisa. De que viver não é preciso, como disse o poeta num verso de mais de um sentido.  Mas que navegar é preciso, embora eu ainda não tenha definido como, quando e onde ancorar.

E enquanto eu vivo meu mundo pessoal em meus próprios pensamentos, recordo ainda que durante uma rápida saída para comer algo e disputar a mesa com moscas, uma reportagem falava da realidade dura dos pescadores do Nilo, chamadas escritas no rodapé atualizavam sobre notícias sobre um mundo de bomba no Oriente Médio, xenofobia no país que tanto brigou pelo fim do Apartheid e  enfim, de sequestros. As notícias foram cortadas pelo pedido de pessoas que pediram para ver um dos campeonatos de futebol. Um homem local sentou-se em minha mesa sem muitas delongas, simplesmente porque era uma boa localização para ver a TV. Pensei na estranheza que aquilo me causara, vindo de um mundo onde a mesa, enquanto « sua », é um reino onde apenas se sentam aqueles que são convidados. Ele apenas me perguntou se eu assistia futebol. Resolvi não revelar minhas origens do que ainda insistem em chamar « País do Futebol » para não continuar um papo que não tive vontade de ter  nesse dia tão cheio de introspecção e respondi apenas que só assistia futebol durante a Copa do Mundo, o que afinal era verdade.

Enquanto busco o que fazer, me arrependo de não ter trazido meu HD com uma série de filmes novos copiados de um colega que bem poderiam entreter-me um pouco mais, com a vantagem de ainda vir com legendas em português, já que o colega em questão é um « gajo muito fixe, ó pá » que fez a gentileza de emprestar-me seu pen drive recheado de filmes.

Penso que deveria ter trazido mais um livro, sabendo que o outro fatalmente acabaria logo e penso também que fico contente em poder deixa-lo para trás, sabendo que um dos colegas por aqui, embora esteja viajando, é espanhol e nesta língua está o livro. E penso que gosto de deixar livros para trás e descobrir novos no caminho, como se livros pudessem mais que contar apenas histórias escritas nele, pudessem também contar histórias de quem os teve um dia.

E finalmente penso que ainda há trabalho a fazer e, apesar de princípios de manter um dia com certa distância dos afazeres, o dia tornou-se longo demais e que talvez eu possa descobrir algo que ainda não havia pensando enquanto trabalho, enfim.

Mas não há um finalmente, porque continuo pensando.

sábado, 4 de abril de 2015

Sons ao redor

O calor é imenso. Impossível de descansar nessa quente tarde de sábado dentro do barraco de pau à pique que me foi atribuida para esses dias de trabalho nesse ínfimo pedaço desse planeta enorme. Coberta com telhas de metal tão inadequadas à elevada temperatura, o barraco apenas esquentava ainda mais e o calor acumulado fazia-se sentir durante toda a noite. As pequenas janelas não contribuiam para ventilar o interior e já eram quarto noites mal dormidas.

Foi nessa quente tarde de sábado, no desespero de tentar ao menos uma pequena soneca, que decidi usar duas cadeiras para recostarme  à sombra em um ponto do compound onde uma suave corrente de ar dava uma deliciosa sensação de alívio contra o termômetro que passava dos quarenta graus.

Em minhas mãos, um velho livro de Gabriel Garcia Marquez em espanhol que encontrei em meio a tantos outros livros em tantas outras línguas deixados pelos que vão passando. O livro, chamado Notícia de um Sequestro em português, falava da vida de cárcere privado sofrida por pessoas sequestradas em meio à era de Pablo Escobar na Colômbia e do processo que envolvia a libertação destes.

Deito o livro em meu colo e encosto a cabeça na cerca feita de palha. Embora os fiapos de palha num primeiro momento me incomodem, deixo-me vencer pela necessidade de repousar. Fecho os olhos e percebo então os sons que me rodeiam e que me tiram da sensação de silêncio num momento em que outros moradores do campound estão trabalhando fora em outro lugar, quietos por aqui ou até dormindo em suas barracas ou tendas não tão quentes como a minha. Primeiro chama-me a atenção a voz de duas crianças brincando, falando palavras numa língua que desconheço, mas que não deixam de transmitir a simplicidade de crianças brincando. O que me leva a pensar que vinte quilômetros daqui, e às vezes ouvimos evidências de tal através de estopins que inrompem ao longe, pessoas que um dia foram crianças disputam territórios e já perderam sua inocência.

Pássaros pequenos, pios dos pintinhos que desafiaram a caça aos ovos feita semanas antes graças a uma galinha que soube bem esconder sua produção somam-se ao burro que zurra (confesso que tive que apelar ao Google para lembrar disso) e à cabra que bale. Não há som de carros, pois os poucos que rodam por aqui são das organizações que por aqui aterrisaram.

É um silêncio cercado de sons. Então não é silêncio, diriam. Mas vejo, numa mistura de percepções e sentidos, esses pequenos sons ao redor como cores que se dão ao silêncio. Porque esses sons são de movimentos do lado de fora que não vejo e que me fazem imaginar suas origens.

Com a cabeça já ajustada à cerca de palha, caio no sono. Acordo com o ritmo da caneta que bate sobre a mesa do escritório que fica uns 10 metros de onde estou. Um colega, isolado dessas cores de som por seus fones de ouvido, bate a cadência da música que ouve. Empolgado, ele chega a cantar junto sem se dar conta que alguém o ouve do lado de fora e que assim, é sem saber capturado para somar-se aos sons ao redor.

domingo, 8 de março de 2015

Falta...

Hoje escrevo por simples necessidade de escrever. Escrever para preencher os milhares de quilômetros que me distanciam de minhas raízes. Porque sim, por mais que essas raízes voem, elas tem se mostrado cada vez mais necessitadas de repousar em terra firme.
Quando estamos longe,  as pessoas se habituam, seguem suas vidas, criam novas histórias onde quem foi acaba quase que inevitavelmente ficando fora dela. Afinal, pensar que alguém distante poderia continuar ali, seria quase como aquela imagem do lugar vazio à mesa.
Por outro lado, o desejo de quem parte é voltar e encontrar tudo igual, como se o mundo tivesse parado e esperado por você. Obviamente, quase como parte da lição de casa, a gente aprende que não é assim.
Você se transforma em alguém que passa para dar um oi de vez enquando. Durante nossas vidas, pessoas vem e vão, algumas ficam, outras não. Quando opta-se por trabalhar longe, é tudo isso, mas de maneira muito mais acelerada. E com tantas pessoas que vem e vão em tão pouco tempo, sem que exista um processo mais intenso de ligação e afeto, o pensamento volta-se àquelas pessoas com às quais as relações puderam estreitar-se com muito mais qualidade.
Pensa-se na família, nos sobrinhos que vão crescendo e aprendendo coisas novas independente de você estar lá ou não, no que cada pessoa vai construíndo enquanto você está fora. Pensa-se nos amigos feitos em diversos momentos, naquela faculdade, naquele curso, nos feitos graças à tecnologia mas cujas afinidades permitiram que a amizade transpassasse a tela. Pensa-se no que cada um está fazendo e se volta e meia eles se lembram de você.
Em dias nos quais o quotidiano distinto de onde você está não permite explorar a cidade, limita pequenos prazeres e exige muita adaptação às condições de vida, a filosofia budista de pensar na felicidade no que é o nosso aqui e agora acaba disputando espaço num pensamento que viaja até onde a felicidade está em pegar um cinema e imaginar com quais desses amigos seria. Talvez porque uma boa neurótica volta e meia sofre pela falta, enfim.
Muitas vezes, você comemora quase que solitariamente a riquesa de suas experiências, sorri só e se deslumbra com elas e também se revolta com muita coisa que ve, mas lamenta a dificuldade em compartilha-las. Principalmente porque sabe que você se dispos a viver isso. E que a curiosidade de familiares e amigos pode ser satisfeita até o limite individual de cada um.
Daí você pensa que na verdade tem tanta coisa pra contar e poderia escrever um livro e enquanto isso atem-se a um blog, onde se promete que vai falar das coisas banais do dia a dia, das comidas diferentes, daquela viagem pelo Nilo, de momentos até divertidos de nossa capacidade de adaptação.

Mas quando se dá conta, tudo o que quer dizer é que às vezes tem muita vontade de voltar, que tem saudades e que espera ter aquele lugar à mesa, ir ao cinema, fazer falta aos amigos como eles fazem falta para você.  Ah, a falta outra vez!