terça-feira, 31 de maio de 2011

Verde, amarelo, azul e mzungu

Ser brasileira faz de mim um ser universal, é essa a sensação que tenho. Para ser ainda mais universal, meus pais brincaram de “papai-mamãe” na Alemanha, partiram grávidos de navio para o Brasil e finalmente nasci em São Paulo, terra de muitos imigrantes, migrantes, onde pouco mais da metade da população da cidade não nasceu.

Até agora, em qualquer parte do mundo onde estive, mencionar que sou brasileira parece reduzir consideravelmente algumas distancias. Também houve quem se surpreendeu ao ver que eu não era uma mulata com samba no pé e sim uma branquelona que frequentemente já foi tomada por americana pelas andanças na América Central, o que também aumenta o assédio dos vendedores de bugigangas, bem como o preço destas.

Na Africa, portanto, sou parte de uma minoria dentro do quesito cor-da-pele. Ainda assim, ser da terra do samba, do afoxé, do olodum, do Carlinhos Brown, da mulata, do rei Pelé, da Umbanda, do Candomblé, do batuque, da bunda, do Ronaldinho, da cachaça e da macumba faz com que eu me sinta um pouco mais em casa. Ao menos quando posso falar de meu país e mostrar quantas coisas chegaram da Africa. Alias, descobri recentemente que o “huile de palme” (Óleo de palmeira) que tanto falam aqui é nada mais, nada menos que nosso azeite de dendê!

Porém, tem o outro lado da moeda. Sabemos que tudo isso, assim como meus pais grávidos, também chegou de navio. Este navio, no entanto, se chamava “Navio Negreiro”, cuja finalidade estava bem longe de servir ao turismo. Castro Alves fez poesia, o que, aliás, me faz lembrar uma amiga do colegial que foi obrigada a decorar todo o poema – e que ilustra muito bem uma triste realidade de nossa história-, por nossa extremamente rígida professora de português, rigidez esta rara numa escolaestadualdeprimeiroesegundograu, mas ao qual eu sou produndamente agradecida até hoje. Obrigada, professora Marilda, por ter evitado que alguns de seus mancebos e mancebas fossem além da mediocridade ortográfica e no analfabetismo funcional que infelizmente também está presente em nosso Brasil varonil.

Aqui, quando ando pela cidade, sou chamada de mzungu. Quando estou nos vilarejos, em outra região, sou mundele. Ambas as palavras significam “pessoa branca”, a primeira em suahili, a segunda em lingala. Deixo de ter nome e endereço para ser identificada e nomeada segundo a cor da minha pele. Isso me faz lembrar também que no Brasil, apesar de toda sua exaltação do orgulho de sua heterogeneidade, de suas influencias de todo o mundo e de sua miscigenação de raças, é um país que precisou criar uma lei para evitar que a cor da pele fosse fruto de discriminação. Um “e aí, negão”, dependendo de como se coloca e de como se interpreta, pode legar uma pessoa à cadeia. No Brasil, também foi preciso criar o sistema de cotas em universidades públicas para tentar minimizar a falta de equilibrio mostrada em estatísticas nas quais afrodescendentes aparecem em número infinitamente menor que eurodescendentes nas salas de aula. Tudo isso mais de um século depois da assinatura da lei Áurea.

Ser identificada como ‘mudele’, até tem seu charme. Ver um grupo de crianças pouco habituadas à presença de cara-pálidas (a professora Marilda foi antes da revisão ortográfica, não sei se vai hífen ou não) correndo em sua direção gritando “mundele, mundele” como se eu fosse alguma atração turística pode até ser uma interessante experiência antropológica. Então o tempo passa e a novidade também deixa de ser novidade. Ao fazer compras na cidade, o cumprimento sempre vem acompanhado de “mzungu”. Bom dia mzungu, aqui tem um lugar, mzungu, fez boa viagem, mzungu? O ser humano é especialista em criar diferenciações. Mas talvez o problema não seja fazer a diferenciação, mas como a fazemos. Assim, o que difere as pessoas não é a cor da pele, mas a intenção de seus atos.

A lei contra o racismo quer evitar que a menção à raça seja objeto de ofensa. Chegar ao ponto de ser necessario haver uma lei dessas num país tão rico em influencias culturais é triste. A história, com muitos tropeços, permitiu que descendentes de seres de todo o mundo convivessem na terra que tudo dá. Mas a lei foi necessária e ainda bem que pode enfim ser criada, o que mostra o reconhecimento de um problema e quem sabe, possa levar a reparar as consequencias marcadas de uma historia da qual não tenho orgulho.

Em tempo. Aqui, eu tenho cabelo ruim, me disseram ainda no Chade. Meu cabelo escorrido não me permite reproduzir o trançado incrível que as mulheres fazem. São penteados lindos e criativos que se pudessem ressaltar do outro lado do Oceano Atlântico o orgulho individual do que é naturalmente belo dentro de cada raça humana, deixaria o mundo verdadeiramente colorido.

Um comentário:

Lucy disse...

Juju mzungu, eu já tinha lido este texto mas acabo de ler de novo! Ele é demais!